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11º Encontro do Clube: 1º Aniversário do Heureka


Leia aqui os textos e considerações partilhadas neste encontro:

Bocage e Paul Éluard (Por Cristina Abranches Guerreiro)

O célebre soneto “Liberdade querida e suspirada” terá sido composto por Bocage entre 1797 e 1802 – uma fase particularmente difícil da sua vida, marcada por perseguições políticas e privação da liberdade. Em 1797, foi preso pela Intendência Geral da Polícia, sob o comando de Pina Manique, acusado de escrever textos considerados subversivos e imorais; depois de algum tempo no cárcere, foi internado num convento, o que o afastou da vida pública e literária. Esse contexto de repressão e isolamento inspira o tom suplicante e quase místico do poema, em que a liberdade é invocada como uma deusa redentora.


Liberdade querida e suspirada,

Que o Despotismo acérrimo condena;

Liberdade, a meus olhos mais serena,

Que o sereno clarão da madrugada!


Atende à minha voz, que geme e brada

Por ver-te, por gozar-te a face amena;

Liberdade gentil, desterra a pena

Em que esta alma infeliz jaz sepultada;


Vem, oh deusa imortal, vem, maravilha,

Vem, oh consolação da humanidade,

Cujo semblante mais que os astros brilha;


Vem, solta-me o grilhão da adversidade;

Dos céus descende, pois dos Céus és filha,

Mãe dos prazeres, doce Liberdade!



Durante a Segunda Guerra Mundial, em 1942, Paul Éluard compôs um poema que viria a ser lançado por aviões ingleses sobre o território francês ocupado, como um gesto simbólico de luta e inspiração. Inicialmente intitulado “Une seule pensée”, o texto é constituído por 21 estrofes que terminam com o mesmo verso, “J’écris ton nom”: mencionado apenas no final da composição, esse nome – “Liberté” – converter-se-ia em título deste famoso hino à liberdade, celebrada como ardente desejo da alma humana nas mais diversas circunstâncias da vida.


Sur mes cahiers d’écolier

Sur mon pupitre et les arbres

Sur le sable sur la neige

J’écris ton nom


Sur toutes les pages lues

Sur toutes les pages blanches

Pierre sang papier ou cendre

J’écris ton nom


Sur les images dorées

Sur les armes des guerriers

Sur la couronne des rois

J’écris ton nom


Sur la jungle et le desert

Sur les nids sur les genets

Sur l’écho de mon enfance

J’écris ton nom


Sur les merveilles des nuits

Sur le pain blanc des journées

Sur les saisons fiancées

J’écris ton nom


Sur tous mes chiffons d’azur

Sur l’étang soleil moisi

Sur le lac lune vivante

J’écris ton nom


Sur les champs sur l’horizon

Sur les ailes des oiseaux

Et sur le moulin des ombres

J’écris ton nom


Sur chaque bouffée d’aurore

Sur la mer sur les bateaux

Sur la montagne démente

J’écris ton nom


Sur la mousse des nuages

Sur les sueurs de l’orage

Sur la pluie épaisse et fade

J’écris ton nom


Sur les formes scintillantes

Sur les cloches des couleurs

Sur la vérité physique

J’écris ton nom


Sur les sentiers éveillés

Sur les routes déployées

Sur les places qui débordent

J’écris ton nom


Sur la lampe qui s’allume

Sur la lampe qui s’éteint

Sur mes maisons réunies

J’écris ton nom


Sur le fruit coupé en deux

Du miroir et de ma chambre

Sur mon lit coquille vide

J’écris ton nom


Sur mon chien gourmand et tendre

Sur ses oreilles dresses

Sur sa patte maladroit

J’écris ton nom


Sur le tremplin de ma porte

Sur les objets familiers

Sur le flot du feu béni

J’écris ton nom


Sur toute chair accordée

Sur le front de mes amis

Sur chaque main qui se tend

J’écris ton nom


Sur la vitre des surprises

Sur les lèvres attentives

Bien au-dessus du silence

J’écris ton nom


Sur mes refuges détruits

Sur mes phares écroulés

Sur les murs de mon ennui

J’écris ton nom


Sur l’absence sans désir

Sur la solitude nue

Sur les marches de la mort

J’écris ton nom


Sur la santé revenue

Sur le risque disparu

Sur l’espoir sans souvenir

J’écris ton nom


Et par le pouvoir d’un mot

Je recommence ma vie

Je suis né pour te connaître

Pour te nommer

Liberté.

Sólon (Por Ana Alexandra Alves de Sousa)

Da terra negra arranquei

os marcos da hipoteca, por toda a parte enterrados.

A que era antes escrava é agora livre.

Reconduzi a Atenas, pátria fundada pelos deuses,

Muitos que tinham sido vendidos, com justiça

Ou sem ela, e outros que haviam fugido

Forçados pela pobreza; já nem ático falavam,

De tanto vaguearem por toda a parte. (Sólon, fr. 33 West, fr. 24 Diehl )


Sólon refere neste fragmento a célebre "seisachtheia", um conjunto de reformas que libertavam os atenienses subjugados pelas dívidas (596 a.C.). Muitos camponeses haviam hipotecado a própria terra — e, em casos extremos, a própria liberdade — tornando-se servos ou até escravos dos seus credores.

Se, na Atenas arcaica, a dívida podia escravizar de forma literal, hoje as formas de escravatura por dívida são mais subtis, mas não menos reais.

Vejamos:


1.⁠ ⁠Trabalho forçado em nome da dívida

Em países como a Índia, Paquistão ou Bangladesh, milhares de pessoas ainda trabalham anos ou gerações inteiras para pagar dívidas mínimas — contraídas muitas vezes por necessidades básicas como saúde ou alimentação. Os credores mantêm-nas presas em contratos injustos.


2.⁠ ⁠Crédito ao consumo e armadilhas de juros

No mundo ocidental, há uma forma mais sofisticada de “escravatura voluntária”: crédito ao consumo com juros abusivos, leasing de automóveis, cartões de crédito ou empréstimos que “subjugam” as pessoas durante décadas. A liberdade real é limitada — não há grilhões físicos, mas há dependência financeira crónica.


3.⁠ ⁠Endividamento de emigrantes e tráfico humano

Milhares de emigrantes tomam empréstimos para pagar a travessia para a Europa ou para os EUA — e são depois forçados a trabalhar em condições de exploração para saldar a “dívida” em redes de tráfico.


4.⁠ ⁠Empresas que escravizam pelo salário mínimo

Em certos setores, o trabalhador ganha tão pouco que fica dependente do patrão para sobreviver — sem margem para sair, protestar ou poupar.


Hoje Sólon teria de enfrentar os algoritmos do crédito, os contratos predatórios, as plataformas digitais exploradoras e os sistemas financeiros que normalizam o endividamento perpétuo.

Teógnis, Píndaro, Énio e Manuel Alegre (Por João Pereira)

Para comemorar o primeiro aniversário do Heureka – Clube de Leitura, partilhei quatro excertos poéticos que me pareceram pertinentes.


Primeiro escolhi os  versos 173 a 182 dos poemas elegíacos de Teógnis, nos quais o autor aponta a pobreza como uma condicionante da liberdade. Pareceu-me apropriado dar início ao encontro com uma discussão preliminar sobre os pilares essenciais ao exercício da liberdade, pois, nas palavras de Sérgio Godinho, “só há liberdade a sério quando houver / a paz, o pão, / habitação / saúde, educação.”


O segundo excerto retirei-o das Odes Ístmicas. São os versos 13 a 15 da oitava ode, nos quais Píndaro, o poeta, comemora a derrota da invasão persa identificando a liberdade como a única forma de escapar ao fado sombrio que paira sobre as nossas cabeças. Foi um bom ponto de partida para refletir sobre a ligação entre a liberdade e a qualidade de vida.


O terceiro poema, um fragmento da tragédia Fénix de Énio, complementa o anterior. No fragmento 116, o poeta latino associa a liberdade ao bom carácter do homem, dando-lhe um sentido quase espiritual. É uma definição de liberdade com a qual me identifico: liberdade de consciência, a de quem vive uma vida virtuosa e luta pela verdade.


Por fim, declamei umas linhas d’Um Barco para Ítaca de Manuel Alegre, poema dramático originalmente publicado em 1971. Tratando-se de um ataque velado contra o Estado Novo e, em particular, as restrições que o mesmo impôs ao exercício da liberdade, pareceu-me uma escolha capaz de trazer a discussão da esfera dos astros (o mundo das ideias) para a terra… a nossa terra portuguesa, evidentemente.

Rilke (Por David Miranda)

Torso Arcaico de Apolo

Tu não viste nunca o rosto ilustre

em que os olhos, como maçãs, amadureceram. Todavia,

o torso brilha com um olhar de lustre

com uma luz bruxuleante, acanhada e esguia.


Que vive ainda e que te guia. Se assim não fosse, a curva

do peito jamais te fascinaria, nem o sorriso jucundo

poderia dos flancos abrir a zona turva

Do ventre, onde o sexo poisa fecundo.


Se assim não fosse, esta pedra – desfigurada e fugaz pedra seria -;

Porque do abandono dos ombros a transparência não resplandeceria,

à maneira de fera que anda errante na clausura.


Nem o brilho usurparia a bela medida,

feito orla estelar, se cada pedaço da escultura

não te mirasse dizendo: tens de mudar a tua vida.

(Rainer Maria Rilke)


Este poema de Rilke é, para mim, a liberdade em estado puro; o facto de a Grécia se ter firmado na consciência europeia como pátria-mãe da democracia e da liberdade – poderíamos atribuí-lo, claro, à história e às instituições políticas, mas também à paisagem: a paisagem povoada de estilhaços e fragmentos, já que a imaginação é mais livre entre ruínas, nas quais possa reconstituir o nunca-visto partir do conservado. No Egipto não é assim: as pirâmides e as estátuas hieráticas parecem nascidas da própria terra, como o são as laranjas, e, dispostas a durar até ao fim dos tempos, a monumentalidade inexpugnável que propõem tem tanto de grandioso como de opressor.


Mas nas coisas helénicas, destroçadas, perdidas, profanadas – no torso arcaico de

um Apolo ou num excerto de Hesíodo – há uma luz interior que nelas vive como que prisioneira e que um momento de maior contemplação vem libertar, como o olhar do espetador inquieta de repente a fera enjaulada. E, decorridos vinte e cinco séculos, há uma voz antiquíssima que nos é devolvida e diz: tens de mudar a tua vida.


🌿📚 O HEUREKA FAZ 1 ANO! 📚🌿


Heureka 1 aniversário

Há um ano, começámos a ler juntos.


Verso a verso, página a página, palavra por palavra, nasceu o Heureka — Clube de Leitura — um lugar onde pensar em voz alta é ato de amizade, e ler é uma forma de liberdade.


Agora, queremos festejar este primeiro aniversário como sabemos:

com poesia, com alegria e com todos os que fizeram do Heureka uma casa.


📅 26 DE JUNHO DE 2025

📍 SALA CO10C FACULDADE DE LETRAS

⏰ 18:45


✨ Como celebrar?

– Quem quiser, pode trazer um excerto poético sobre liberdade — da Antiguidade ou dos dias de hoje, escrito ou traduzido, lido ou sentido.

– Quem não quiser trazer nada, venha só ouvir, brindar, estar presente.

– Haverá vozes a declamar, copos erguidos e corações que sabem que vale a pena continuar.


Porque Sólon, que legislava com versos,

Tirteu, que cantava o dever e a coragem,

Ésquilo, que opunha a tirania ao humano,

Aristófanes, que fazia do riso uma arma,

e Eurípides, que dava voz aos silenciados,

ainda nos dizem — com palavras de séculos — que a liberdade se diz.

E se diz melhor, sempre, com os outros.


Heureka! Encontrámo-nos entre livros, vozes e brindes — e que assim seja, por muitos e bons capítulos. 📚🍷


Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
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