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O olhar de Medusa: a vítima transformada em monstro

Atualizado: 4 de dez.

Este evento já se realizou!
Palestra Heureka: o olhar de Medusa

Pudemos contar com o interesse por parte do público a que já nos habituaram as sessões anteriores, não obstante a feroz concorrência de Mia Couto na sala ao lado!


Antes de ser dada a palavra aos oradores, declamaram-se excertos de autores antigos que se reportam ao mito de Medusa, fruto da colaboração do Heureka com estudantes convidados de vários anos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


A intervenção de Abel N. Pena começou com uma breve nota filológica, dando-nos conta da etimologia da palavra monstro e do nome Medusa. Salientou em seguida como a figura do monstro – tão facilmente conotada com algo antinatural – corresponderia tão-só a mais um dos fenómenos que a Antiguidade Clássica imputava a uma Mãe Natureza pródiga de maravilhas e portentos. De seguida, o orador passou em revista todas as etapas do mito da famosa Górgone, desde o dealbar da Grécia com Hesíodo até à Roma republicana ferida de morte de Lucano, com uma aprazível dose de Ovídio e Apolodoro pelo meio.


A cada nova releitura do mito, o Professor Abel Pena logrou dois propósitos: tornar mais e mais pungente o trágico destino de Medusa e ajudar à compreensão por parte de quantos o escutavam de como o mito, longe de constituir uma unidade estanque gravada na pedra, foi sempre muito permeável a todo tipo de influências políticas e sociais. Uma última abordagem da figura heroica de Perseu deixou no ar a questão: quando o “monstro” é, na verdade, a vítima, quem são os verdadeiros monstros?


Seguiu-se a intervenção de Isabel Ventura, que lembrou muito oportunamente a efeméride do dia 25 de novembro como o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. A oradora justificou o seu interesse pela figura de Medusa, destacando as semelhanças entre o mito da jovem que, violada por Posídon, foi privada da sua beleza e humanidade por Atena – a deusa, não o esqueçamos, que preside, na Oresteia de Ésquilo, ao primeiro tribunal! – e o perfil psicológico de muitas das vítimas de violência sexual cuja condição não tem merecido a devida atenção da parte da justiça portuguesa.


O grosso da intervenção da Professora Isabel Ventura deu-nos a conhecer os contornos do crime de violação em Portugal e de como fatores económicos de vária ordem e a própria noção de “credibilidade” – consubstanciada na vítima “perfeita” – obstam a que se faça justiça e que seja acautelado esse bem jurídico fundamental que é a integridade física. Falar de Medusa é falar de uma mulher temida e execrada como monstro, vítima da cobiça de um deus e é um passo para também reafirmar que cada vítima, não importa com que imperfeições humanas, tem uma irredutível dignidade diante dos homens e dos deuses.


David Miranda

(Responsável do Heureka – Clube de Leitura)



Divulgação da sessão:

Nesta sessão, partimos da metamorfose de Medusa — a única mortal entre as três górgonas — para refletir sobre as representações da violação, da violência e da vitimação.


Medusa é conhecida pela sua cabeça repleta de serpentes sibilantes, vívidas e ameaçadoras, e, ainda, pelo poder do seu olhar petrificante. Mas, antes desta imagem, a górgona fora uma bela e casta donzela que servia no templo de Atena. Quando o deus dos mares, Poseidon, viola Medusa no templo de Atena, esta dirige a sua ira para a vítima, condenando-a à solidão, ao desprezo e terror alheio. A metamorfose da Medusa ilustra a culpabilização das vítimas típica da cultura da violação (Herman, 1984, Hayes, 2023).


Desejada antes pela beleza, temida — e perseguida — depois pelo seu poder, a sua solidão, mesmo entre as irmãs, ecoa a de tantas vítimas de violação: isoladas, julgadas, silenciadas. Mas Medusa é também símbolo de ira — especialmente da ira feminina (Johnston, 2016). É, portanto, uma figura complexa e multidimensional, que ultrapassa as estereotipias da vítima perfeita, inocente, que segue o “esquema da violação” (Quilter, 2015), preceituador de características e, sobretudo, condutas específicas, antes, durante e após a vitimação.


O que Julia Quilter chama de “esquema da violação”, roteiro prescritivo do que seria uma “violação credível” pode ser encontrado, com mais ou menos intensidade, nos imaginários coletivos e também nas narrativas de julgamentos de violação, em que, frequentemente, se pede prova de que as vítimas, genuinamente, não quiseram, não consentiram e, e, por isso, resistiram ou, se não o fizeram, que estariam na impossibilidade de o fazer.


Ao colocarmos em diálogo o mito e o Direito, esta sessão propõe uma reflexão sobre a construção das personagens em julgamento, sobre quem tem o poder de definir quem foi ou não vítima de violação, e da própria vitimação.


(Isabel Ventura)


Contamos consigo no próximo dia 25 de novembro, às 18h30: O olhar de Medusa: a vítima transformada em monstro.

Organização: Ana Alexandra Alves de Sousa e Sandra Pereira Vinagre



Abel N. Pena

Abel N. Pena (Moreira de Rei, Trancoso) foi Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde lecionou várias disciplinas da Licenciatura em Estudos Clássicos.


Investigador do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, participou em diversos projectos nacionais e internacionais. Foi Investigador Principal do Projecto Mythos e Vice-presidente do Réseau Européen “Le phénomène Littéraire aux premiers siècles de notre ère”.


Além de diversos artigos publicados em periódicos da especialidade, nomeadamente na revista Euphrosyne, publicou A Biblioteca de Apolodoro, um breviário de mitologia grega da época imperial (2025), Eco e Narciso – Leituras de um mito (Coord. 2017), Revisitar o Mito/ Myths Revisited (Org. et alii, 2015), Aquiles Tácio, Os Amores de Leucipe e Clitofonte (2005), Historia Calamitatum – Cartas de Abelardo e Heloísa (2008) e Aristóteles, Retórica – livro II (1ª ed. 1998).



Isabel Ventura

Isabel Ventura é licenciada em Jornalismo (Univ. de Coimbra), mestre em Estudos sobre as Mulheres (Univ. Aberta) e doutorada em Sociologia (Univ. do Minho).


É professora na Escola Superior de Educação de Lisboa, onde leciona nas áreas das políticas sociais e sociologia da educação, e na Faculdade de Direito da Univ. Católica do Porto, onde coordena o seminário “Direito e Género: jurisprudência dos crimes sexuais”.


Investigadora do CEMRI – Centro de Estudos sobre as Migrações e Relações Interculturais (Univ. Aberta), a sua investigação centra-se na violência sexual, justiça, género e estudos feministas. Entre outras obras, é autora de Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação Sexual (Tinta-da-China, 2017), uma análise crítica dos discursos judiciais sobre violência sexual, distinguida com o Prémio Maria Lamas e o Prémio APAV.


Colabora com organizações e iniciativas dedicadas à promoção da igualdade de género, à justiça social e aos direitos das mulheres e raparigas.


Local

Biblioteca Palácio Galveias

Campo Pequeno

1049-046 Lisboa




Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
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